Uma tarde no inferno

Era cedo, por volta das três da tarde, e o sol trabalhava da forma que ele mais sabe, se fazia imponente sobre nós, nos abençoando com mais um dia a um passo do ponto de combustão do cérebro humano; se bem que havia alguns bem fritos naquela hora da tarde já. Avistei um moleque de rua, devia ter uns quinze anos no máximo, gritava e batia palmas, clamando por algum deus, ou a espera de alguma bênção vinda do céu, gritava, batia palmas e babava. As drogas realmente são coisas divinas.

Eu estava com fome, após mais um dia contando cada segundo das minhas seis horas de trabalho, com três intervalos que tomam, ao total, 40 minutos de pausa, e algumas filuras para descansar mais alguns minutos, o que me dá um total de 5 horas e dez minutos de trabalho aproximadamente. Peguei um ônibus e fui em direção ao centro, eu iria me encontrar com minha mãe, eu devia ir ao médico as 16 horas, o que dava uma hora para ficar sozinho e andar pelo centro, tentando me adequar e achar normal o movimento de pessoas pelas ruas. Decidi ir comer no Mac Donaldo, um lugar pouco usual para mim, mas no momento me veio aquele instinto que todo humano criado a base de 6 horas a frente da TV tem de comer um big mac. Fui-me, mas havia esse outro problema: o shopping. Outro antro de pessoas que riem por nada, e agem de uma maneira efusiva e tentam sempre se mostrarem ativas e espontâneas e, principalmente, originais. Um shopping do porte de SL recebe por dia mais de duas mil pessoas, todas espontâneas e originais. E esse era meu problema, tentar ficar uma hora no meio desse povo. E sóbrio.

Um gordo sempre tem medo de comer, bem e muito bem, no meio de pessoas efusivas e espontâneas (e originais, CLARO!). Sempre podemos ser alvo de piadas ou de olhares que denunciam uma vontade de falar mal do gordo, sem falar, é claro, que eu não estava me parecendo com alguém efusivo, original e muito menos espontâneo, o que me deixou com vontade de dar meia volta quando avistei o Mac lotado de uma juventude feliz que aproveitava suas férias e suas vidas sob o belo ar condicionado do shopping, sobre o belo sabor da famosa casquinha do mac donaldo. Dei meia volta e fui embora.

Mas eu ainda tinha fome, afinal não havia almoçado e era gordo, dois fatores dominantes para deixar qualquer ser humano com uma boa fome no meio da tarde. Fui atrás de outros bares, ou algo do tipo, algum recinto sem tanta pessoas, e com boa comida para passar a minha uma hora de solidão no centro de SL. Passei por bons lugares, por saborosos lugares, mas mesmo a maioria deles parecendo um ambiente bom e calmo para se comer, onde só havia alguns velhinhos tomando seu chá com bolo, não consegui entrar em nenhum, eu olhava e imediatamente vinha a minha mente que faltava algo, não sabia dizer o que, mas todos eles pareciam belos demais, confortáveis demais, limpos demais e até mesmo saborosos demais. O que havia de errada eu não sabia ao certo, mas eu não sentia nenhuma atração por esses lugares, nenhuma energia nenhum desejo de freqüentar eles e ver aqueles belos lugares freqüentados por belas pessoas decentes.

Foi então que eu me lembrei de um lugar, assim como eu não sabia porque eu não me interessei por aqueles belos e limpos lugares, eu não sabia porque quando me lembrei deste lugar eu falei ‘é pra lá que eu vou!’. Então cheguei ao recinto, demorou algo em torno de cinco minutos para ser atendido por um gordinho careca que estava paquerando uma velha magra e com a pele velha toda enrugada. Peguei uma cerveja latão e uma pastel de forno de carne.

Foi então que eu comecei a entender o encanto do lugar, a começar pela cerveja amassada que o gordinho careca, que deixava pelos do peito pularem pra fora da camisa velha, me deu. Olhei ao meu redor, nada de especial, vi pessoas feias, mais velhas do que deveriam ser, todas aparentavam cansaço, mesmo os casais, todos bebiam e compartilhavam do mesmo clima de causa perdida, era uma reunião de perdedores as três e meia da tarde em mais um boteco de SL. Foi então que entendi porque me senti tão bem lá, no meio de pessoas que mesmo com a fisionomia feia, não aparentavam perigo algum, tanto físico como espiritual. Eu estava em casa, onde deveria sempre estar. No meio de pessoas que não querem aparecer, que não conseguem ser felizes o tempo todo, pessoas comuns, com problemas e sofrimentos, cada um com sua cruz e seu inferno mental próprio, não havia competição pra ver quem era a mais bonita, o mais forte, ou o mais engraçado, todos competiam, mas para se manterem vivos e felizes, ao menos enquanto a cerveja durasse.

Eu bebia meu latão e finalmente me sentia feliz, não tanto pelo álcool, mas por estar participando de algo verdadeiro, não importa se era apenas um bando de pessoas buscando o consolo do sofrimento diário no copo de cerveja gelado, ao menos era algo espontâneo e original. Pra coroar todo esse sentimento o ponto alto da chinelagem, algo como uma carta de bem vindo ao nosso mundo: meu pastel, que eu havia pedido de carne, era de frango. Eu realmente estava em casa.

corrigido por rufus tedesco :*